Artigo: A reforma trabalhista e a legalização da fadiga

A reforma trabalhista trouxe em seu bojo uma afirmação que desmente séculos de pesquisas na área médica. Segundo os legisladores brasileiros, “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho”, motivo pelo qual admitem livre negociação entre empresas e sindicatos ou até mesmo entre empregadores e empregados hipersuficientes, ou seja, aqueles com diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

 

A Constituição brasileira garantiu aos trabalhadores urbanos e rurais o direito à redução dos riscos no ambiente de trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, pois somente com essa redução, quando impossível a neutralização, poderia ser assegurado o direito à saúde e à integridade física e psíquica, indispensável para uma vida digna, fundamento da nossa Lei Maior.

Ocorre que não é preciso ser médico para saber que a jornada de trabalho pode levar ao esgotamento físico e mental.

 

Não por outro motivo, o tempo de trabalho consta na Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) como elemento indispensável a ser considerado na definição das políticas de saúde e segurança no trabalho.

O legislador sabia que não havia margem de negociação em normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho, tanto que explicitou que a supressão ou a redução de direitos relativos a tais matérias constituíam objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho. Contudo, como num passe de mágica, excluiu as regras sobre duração do trabalho e intervalos dessa vedação, pois não seriam consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho.

 

A vontade do legislador ficou clara, mas não será capaz de mudar a vida real, em que cortadores de cana remunerados por produção são submetidos a extenuantes jornadas de trabalho e morrem de fadiga ou em que altos executivos, submetidos a ilimitadas horas de trabalho para alcançar metas muitas vezes inatingíveis, morrem de exaustão ou se suicidam porque se sentem sufocados pelo trabalho e não visualizam mais possibilidade de retornar à normalidade da vida.

 

Entre esses dois extremos há milhões de trabalhadores que, uma vez liberada a livre negociação quanto aos limites da jornada e à modalidade de registro; à instituição do regime de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, inclusive com possibilidade de indenização dos intervalos para repouso e alimentação; aos períodos de descanso; ao trabalho intermitente; à remuneração por produtividade e à prorrogação de jornada em ambientes insalubres sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho, não terão mais a proteção legal mínima para exigir seu direito ao não esgotamento.

Contudo, como dito, a lei não mudará a realidade.

 

Se algum trabalhador exposto a sucessivas condições de fadiga morrer, adoecer ou tiver comprometida sua integridade física porque o cansaço retirou a concentração necessária para garantir sua segurança, continuaremos diante de evento denominado acidente de trabalho e não será a malfadada previsão legal que isentará o empregador das consequências da inconsequente atitude legislativa de legalizar a fadiga.

Cirlene Luiza Zimmermann é Procuradora do Trabalho, Coordenadora Regional da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho - CONAFRET do Ministério Público do Trabalho no Estado do Amazonas e Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.

Artigo originalmente publicado no Jornal A Crítica no dia 8/09/2017

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